Enquanto a Record está "com mais tesão", a Globo "comete um erro grave",
diz Lauro César Muniz, 74, autor de novelas globais clássicas, como
"Roda de Fogo" e "O Salvador da Pátria".
Em busca da classe C (que hoje representa 54% da população), a Globo
estaria, na visão dele, produzindo tramas popularescas e subestimando
seu público-alvo. "Por que esses caras [a nova classe média] são
inferiores? Tenho a impressão de que buscam uma dramaturgia mais
arrojada", afirma.
No dia 10, o dramaturgo estreia na Record "Máscaras".
JOGO DE MÁSCARAS
Muniz define como "policialesco" o folhetim parcialmente ambientado em
um transatlântico onde "pessoas viajam com outra identidade". A trama
terá ainda um grupo ultrarradical da direita americana que quer comprar
parte do Brasil.
Com elenco liderado por Paloma Duarte, Dado Dolabella e outros
ex-globais, a novela remete até a Antonioni e seu "Profissão: Repórter"
(1975), segundo Muniz. No filme, um jornalista assume a identidade de um
morto.
Para o autor, a novela ilustra uma "ambição" da Record que não se vê
mais na Globo -de onde saiu brigado, após "geladeira" de cinco anos (o
adeus foi com a minissérie "Aquarela do Brasil", em 2000). "Máscaras"
seria uma contrapartida a produções como "Fina Estampa", "a pior de
Aguinaldo Silva, muito pouco arrojada para aquilo que ele próprio fez
antes".
Muniz acredita que os autores da Globo estão "acomodados", contando
"histórias da carochinha, inclusive com certo preconceito" -vide o
mordomo Crô, de "Fina Estampa". "É uma delícia esse personagem, mas é
preconceituoso. O bobo da corte que diverte a burguesia."
Crô foi, justamente, o grande retorno de Marcelo Serrado ao casting
global. Ele e Gabriel Braga Nunes voltaram por cima depois de temporada
na Record.
Os desfalques "doeram". Muniz acha que o canal deve fortalecer um "star
system" para valorizar sua trupe. "Os paparazzi raramente correm atrás
de atores da Record."
Ele também tem ressalvas ao gerenciamento do canal paulista. "Os que
fizeram a Record são ligados à Igreja Universal. A estrutura da igreja é
evidentemente aplicada à emissora. O defeito é que tudo fica mais
lento. A qualidade é que se cumpre direitinho o que se promete."
Confira a entrevista completa.
Folha - De onde vem seu encanto com máscaras? Não é um objeto comum
de se colecionar [Muniz tem máscaras romana, pré-colombiana, grega etc.
em casa].
Lauro César Muniz - Já era um título que eu tinha na cabeça há muito
tempo. Antes [o nome da novela] era "Navegantes", mas era muito fraco.
De onde surgiu a ideia da trama?
Essa ideia vem de longe. A coisa da troca de identidades é batida, mas
fascinante. Há muitos filmes que vi sobre isso. [Tem] "Profissão
Repórter", do Antonioni, sobre um cara que troca de identidade e depois
sofre as consequências da pessoa que substituiu.
Como os dilemas abordados por Antonioni aparecem na novela?
Passei em frente ao porto do Rio e vi aquele navio enorme, de 15
andares. Era praticamente um prédio. Fiquei pensando: aí dentro tem
muitas histórias boas. Depois fiz um tour e saquei que todas as pessoas,
quando pegam o navio, se despedem do seu cotidiano e ficam fascinadas
pela ideia de uma aventura.
A ideia começou a crescer: pessoas que viajam numa outra identidade, que não são o que são no dia a dia do continente.
Com isso, fiquei fabulando, até que veio uma ideia mais completa de fazer uma história de troca de identidade dupla.
Fiz um personagem positivo, o herói, virar um vilão, e um vilão virar um
herói. O herói veste a máscara do vilão, o vilão a do herói.
Essa dupla troca me propicia uma trama policial interessante. Daí nasceu a novela.
Você poderia detalhar como seria essa troca?
É uma história muito complicada. Uma trama policialesca bem urdida e com
implicações de várias naturezas. Não sou um bom contador de história
oral [risos], prefiro escrever.
Você acha que o público tem abertura maior para essas versões mais
complexas de herói e vilão, que já vimos em "A Favorita" [novela de João
Emanuel Carneiro, exibida em 2008 na Globo]?
Acontece muito do herói e do vilão se confundirem, e é isso que estou procurando.
Essa coisa do maniqueísmo --bem de um lado, mal do outro--, esquemático demais, isso é uma bobagem.
Estou querendo fugir disso aí para criar uma essência, poeque não existe
essa identidade única. Pessoa é uma série de coisas. Tem vezes que ela é
um vilão, ou pode ser um herói. É uma coisa que a novela pode estudar e
aprofundar.
Mas não só esses dois personagens. Muitos personagens usam outros tipos
de máscara. Por exemplo, a prostitura de luxo, Giselle Itié, que
evidentemente usa máscaras. Muda de nome para se defender também. Serve o
cliente da maneira que o cliente quer, se fantasia se o cliente quiser.
E não quer ser a prostituta durante o dia, quando vai ao supermercado.
Quer ser ela mesma. Às vezes consegue, às vezes não.
Há muitos outros tipos de máscara. O político que usa um laranja e faz o
trabalho por trás, para não aparecer. O próprio laranja é uma máscara.
Consegui, na novela, criar um painel de máscaras sociais.
Também liguei isso a uma ligação com os Estados Unidos para fazer um
contraponto do que foi nossa relação com o país no passado e o que é
hoje.
Estados Unidos? Como assim?
Tínhamos uma postura de colonizado. Cinematograficamente, em literatura, culturalmente, de todas as formas.
E de repente o Brasil foi emergindo, ficando mais livre desse vínculo
tão forte com os EUA. Fomos nos distanciando, somos nós, temos uma cara,
uma máscara.
Então fiz um jogo político entre um grupo ultrarradical de direita, que
tem sede em Dallas, Texas, e que tenta comandar um grupo brasileiro para
se apossar de um território grande do Brasil para produzir biodiesel,
que é uma coisa que os americanos estão procurando.
Peguei o biodiesel de propósito, por ser um exemplo bom de superioridade
à produção americana. Esse grupo de extrema-direita tem intenção de
comprar um ou muitos latifúndios no Mato Grosso do Sul, que é região não
totalmente desenvolvida ainda.
Esse grupo americano começa a comprar através de laranjas --mascarados--
muitas terras. E são sempre incógnitos, figuras que não aparecem
claramente. Aparece só um americano, mas é um soldado raso da
corporação.
A novela é passada onde?
No Rio, mas essa coisa se reflete no Mato Grosso do Sul, o personagem central tem origem lá, é fazendeiro.
Fiz [a história] baseado numa série de coisas que li a respeito de ocupação de terras no Brasil, na Amazônia, em jornais.
A história é policial, na verdade, e tem um substrato político-social. E
também é um ano muito interessante, em que Obama [presidente dos EUA]
vai se colocar em xeque. E tem uma direita americana fazendo todo um
trabalho de derrubada do Obama. Isso tudo, na novela, vou discutir. Você
vai ver! Já fiz quase 40 capítulos, tá dando certo.
Serão quantos capítulos no total?
Me falaram em 200, pode ser até que ultrapasse isso.
Você é um defensor de novelas mais curtas.
Você está certíssima. Sou um cara que tô fazendo há anos campanhas por novelas curtas, de 120, 140 capítulos.
Não fizemos porque todo mundo acha que o ponto de equilíbrio de uma novela é o capítulo cem, que ela vai lucrar...
Mas não é verdade, se você fizer mais curta, com menos personagens,
cenografia, locuções, diretores. Aí o ponto de equilíbrio recua para por
volta de 60 capítulos. Temos que pôr isso em prática. Tentei várias
vezes na Globo, não consegui. Fui barrado. "Você para com esse assunto!"
No entanto, estou sentindo uma acolhida agora. Não só na Record, com
quem eu dialogo. Tô sentindo que as novelas da Globo estão encurtando.
Não porque eu estou falando, mas porque a coisa está no ar.
Uma novela longa, de 200 capítulos, está na contramão do mundo de hoje,
que é muito dinâmico. A internet fez a nossa leitura ficar uma coisa de
raios: você consulta uma coisa aqui, vai para outra ali, volta para a
coisa antiga. Não tem aquela leitura do livro, que é da esquerda para a
direita, linha por linha.
Não podemos ficar nos arrastando, fazendo novelas cheias de barriga
--barriga é quando a novela perde o interesse--, sem ter compatibilidade
com esse mundo tão dinâmico que a gente está vivendo.
Por falar nesse mundo, TV aberta é quase sempre a mais reativa, reino da linguagem mais tradicional.
Penso muito [em transmídia]. Temos que tomar cuidado para não
transformar a linguagem da telenovela de uma hora para outra. Até tentei
no passado fazer coisas mais arrojadas do que faço hoje. Fiz novelas
com três épocas simultâneas, "Espelho Mágico", que misturava ficção com
realidade... Tudo a Globo me permitiu fazer no horário das oito, que é
severo.
Acho que temos que entender melhor essa leitura do mundo atual, com
participação forte da interatividade, para formular uma nova
dramaturgia. Mas não cabe a mim, cabe a um jovem. Eu estou impregnado
ainda de uma dramaturgia mais convencional, de conflitos, clímax, salto
de qualidade.
Jovem que esteja vivenciando essa dinâmica toda dos tempos de hoje pode
criar uma nova linguagem. Não uma linguagem simplificada de "Você
Decide". Temos que pensar em alguma coisa muito mais complexa. Mas nem o
cinema internacional chegou a isso ainda. Tem algumas tentativas, como
"A Origem".
Um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho...
Essa estrutura é complexa demais, mas acaba ficando simples, se você souber fazer.
"Máscaras é sua terceira novela na Record. Como vê sua evolução na
emissora? E o amadurecimento e investimento da Record nas novelas?
Começou muito pobre. Quando fiz "Cidadão Brasileiro" [2006], não
tínhamos condição nenhuma, toda cidade cenográfica era apenas uma praça.
Não tínhamos computação gráfica, os estúdios eram pequenos.
Hoje, não. Bastantes estúdios de ótima qualidade, um quadro de luz
fantástico, câmeras de última geração. Tecnologicamente falando, está
perfeita a Record.
Do ponto de vista do conteúdo, estamos mais arrojados do que a Globo. A
Globo está cometendo um erro grave: está acreditando que essa classe C
emergente, que apareceu depois dos oito anos do Lula...
Acho que há um equívoco muito grande. Essa classe C nada mais são do que
os descendentes de uma classe D/E que houve no passado, que assistia a
TV em preto e branco, colocando palhinha de aço na ponta da antena pra
melhorar um pouquinho a imagem.
Assistiam às nossas novelas na Globo na década de 70, 80, com grande
aplauso. E eram novelas de muito melhor qualidade, muito mais arrojadas.
Por que recuar agora? Os descendentes dessa mesma classe atingiram 54%,
segundo as últimas estatísticas. Por que esses caras são inferiores e
têm uma percepção de temática de outro nível? Não, ao contrário, tenho
impressão de que evoluíram também nisso. Estão querendo uma dramaturgia
melhor, mais arrojada.
Você pode dar um exemplo do que seria uma temática pouco arrojada na Globo?
"Fina Estampa" é muito pouco arrojada para aquilo que o próprio Aguinaldo Silva fez antes.
Ele fez excelentes novelas, e essa é a pior do Aguinaldo. Faz ainda
sucesso, porque não tem outra coisa pra ver, então é isso mesmo.
Em contrapartida, nós da Record estamos trabalhando num nível mais
ambicioso. Eu com essa "Máscaras" talvez esteja até me excedendo. Não
faz mal, é uma tentativa.
O "Vidas Opostas" é uma novela muito boa também, que botou o dedo na ferida, que falou com verdade sobre o morro, a favela.
Enquanto que a Globo está contando histórias da carochinha, inclusive
com um certo preconceito até, em relação a homossexualismo. A caricatura
do homossexual é sempre uma forma preconceituosa. É um retrocesso ao
trabalho feito pela telenovela ao longo do anos, quando a gente mostrou
que há uma possibilidade de você emergir os homossexuais como um grupo
de pessoas absolutamente normais. Temos que aceitar passivamente,
tirando aquele rótulo terrível de doentes, de desvio, aquela bobageira
toda que as religiões colocaram.
Como a Record trata os homossexuais?
Muito bem. Nas novelas todas em que apareceram, há personagens que são apresentados com dignidade, normalidade.
Mas sem beijo gay.
Esse beijo gay é uma monumental bobagem. Mais importante é demonstrar o
afeto entre duas pessoas do mesmo sexo. Isso que conta. O beijo é
escândalo pouco. A gente já está cansado de ver esse beijo na parte das
fotografias nas páginas dos jornais.
Mas tem beijo heterossexual nas novelas.
Acho que é a última barreira que temos que derrubar, mas não vai
acrescentar nada. A hora que fizer o beijo gay, como fez o SBT, vai
chegar à conclusão que não é nada, se a psicologia dos personagens não
estiver aprofundada, tentando entender os reais problemas que esses
novos humanos apresentam.
Eles adquiriram um status muito bom. Agora vem uma novela como essa
["Fina Estampa"]. É uma delícia esse personagen, Crô [mordomo
interpretado por Marcelo Serrado], mas é preconceituoso ao meu ver. Ele
vira sempre o palhaço, o bobo da corte. Quando tem que fazer rir, o bobo
da corte aparece e diverte a burguesia. Acho que é um péssimo exemplo,
de comunicação fácil e preconceituosa.
Tanto o Marcelo Serrado quanto o Gabriel Braga Nunes são gratos ao
senhor. Mas, depois de temporada na Record, saíram de volta para a
Globo. Como você se sentiu em relação a isso?
A Globo tem uma coisa chamada "star system". Acredita nisso. A Record
tem uma estrutura muito diferente, ainda não entendeu o que é "star
system". Não conseguiu ainda projetar seus atores.
Está começando agora. Nas chamadas da novela, por exemplo, agora estão
valorizando bastante o nome dos seus atores. Veja bem, a Record vem de
uma estrutura de uma religião, de uma igreja.
A estrutura de uma igreja enquanto instituição é rígida. Semelhante à
estrutura militar. Isso em qualquer religião, na católica é assim
também, mais ainda. É uma estrutura à qual eles estão vinculados,
difícil para eles ver outra possibilidade.
Por isso o "star system" fica um pouco abalado, porque o que importa é a
Record em primeiro lugar. Seus vários componentes ficam um pouco
abafados. Se você ver, você não destaca nenhum grande profissional, a
menos que seja um ator de ponta. Os outros ficam meio esquecidos, não
participam da fofoca. Os paparazzi raramente correm atrás dos atores da
Record.
É bobagem a gente querer bancar a avestruz e enfiar a cara. O "star
system" nos ajuda e muito. As pessoas acompanham as fofocas dos grandes
nomes da TV. E a Record está abrindo agora. Parece que caiu uma ficha,
todo mundo entendeu que star system é importante, sim, que vamos
alimentar isso. Que as novelas têm de ter um tempo certo, no horário
certo.
A tática da Record, em outros tempos, do "Poder Paralelo", "Cidadão
Brasileiro", os horários das novelas oscilavam. É uma estratégia de
guerrilha que eles faziam: vamos ver de que forma a gente pega a Globo.
Se a Globo tem um futebol ruim na quarta-feira, vamos entrar no horário
do futebol um pouco antes. Depois, mudava completamente o horário da
novela em função de tentar pegar os momentos fracos de programação da
Globo.
Isso acabou. A Record agora tem um painel de programação sólido, vai cumprir os horários, atingiu a maturidade.
Você não respondeu sobre o Marcelo e o Gabriel. Doeu eles saírem?
Doeu, claro. Nossa, eram ótimos atores. Em "Poder Paralelo" carregaram a
novela. Marcelo era o protagonista, e o Gabriel, o antagonista. De
repente, a gente ficou sem dois grandes atores. Mas estamos lançando
outros. Agora vamos lançar Fernando Pavão, que já tinha feito "Sansão e
Dalila", uma minissérie bíblica. Você pode até discordar da temática,
mas eles fizeram bem feito. Fernando fez o papel do Sansão com
dignidade.
Com isso, nós estamos formando outra vez novo elenco. A Paloma [Duarte],
não, já é uma atriz da casa, minha atriz preferida na faixa de idade
dela. Espero que ela nunca saia da Record. E o Gabriel talvez até volte.
Sou amigo dele, converso com ele de vez em quando. Ele não diz que vai
voltar, mas sinto ele com saudades de algumas coisas.
Conversei com Rodrigo Faro no final do ano, e ele sentia muito isso:
medo de sair da Globo e ir para a Record, que era a nº2. Existe ainda
resistência em ir para a Record?
Existe, mas acho que com o tempo isso acaba. Acho que a Record vai
crescer em audiência. Está fazendo novelas de boa qualidade.
Tecnologicamente, cresceu bastante. Podemos, sim, atingir um nível bom.
Não é agora, ainda, mais uns quatro e cinco anos e dá para competir.
E vocês estão "namorando" alguém, de outra emissora ou do cinema?
Estamos sempre namorando alguém. Gostaria de fazer novela com Wagner
Moura. Mas também a Globo gostaria. Talvez seja o grande ator do
momento.
Já conversei com vários. Vera Fischer, Sônia Braga. Isso em outros
tempos. Agora nós estamos empenhados em fazer nosso elenco aparecer.
Vocês têm uma meta de audiência?
O sonho é chegar a 20 pontos, mas é sempre remoto. Para chegar a 20, é
preciso que a Globo dê bem baixo --para o nível da Globo. Nesse horário
das 20, significaria a Globo dar 20 também, o SBT não dar nada... É
muito difícil. A meta da minha novela é 15. Já está muito bom. A atual
dá 12. Uma média boa, mas tem de ser superada.
Acho que tem um preconceito muito grande em relação à Record. A mídia
não abre suas primeiras páginas para a Record. Um site importante como o
da UOL: raramente a Record está na primeira página. E a Globo está todo
dia, com as maiores bobagens. Qualquer bobagenzinha com o personagem da
Christiane Torloni aparece. A Record não conseguiu isso ainda. Talvez
por causa da origem da Igreja Universal. Ou um trabalho muito bem feito
da Globo de minar a Record.
Você está aqui porque eu fui da Globo, fiz quase toda a minha carreira
de TV na Globo, sou pioneiro da Globo. Isso também a Record sabe e
divulga.
Como é a estrutura religiosa na prática, para quem trabalha lá?
Não estou fazendo uma crítica negativa. Estou dizendo que é assim.
Uma estrutura em que se obedece a uma hierarquia fielmente. Ninguém
passa na frente de ninguém. Os que fizeram a Record são todos ligados à
Igreja Universal do Reino de Deus. Os bispos, os pastores.
Com isso, tem uma estrutura da igreja evidentemente aplicada à emissora. O que é muito diferente da Globo.
Na Globo você sente que a coisa é mais relaxada. Você pode falar com
qualquer pessoa, a qualquer momento. Cruza no corredor com o "big boss"
da Globo, já troca um assunto, passa por cima de outro. Não tem
importância nenhuma.
Na Record você sente que tem uma importância. Porque ali tem uma organização, um organograma compacto e bem feito.
Visitei muitos países socialistas no tempo em que havia ainda socialismo
na União Soviética. Entendi aquilo lá como uma sociedade também
bastante hierárquica e militarizada --não no sentido de repressão (que
também havia), mas no sentido de solidez. Muito diferente de um país
capitalista, onde a gente navega mais fácil, mais à vontade. Não tem que
seguir certos caminhos para atingir um ponto.
Uma empresa que está se apoiando em estrutura religiosa tem também a
rigidez socialista. É tudo muito burocratizado, isso impede um pouco a
velocidade do processo.
O defeito é que tudo fica mais lento. A qualidade é que se cumpre
direitinho tudo o que se promete. Você não é traído. Uma palavra dada é
uma palavra dada, a coisa acontece. A palavra dada na Globo pode virar
fumaça se aparecer uma novidade de último momento.
Dá para comparar a Record a China e a Globo aos EUA? A gente não tem muita noção do que acontece na China.
Você conhece o Florisbal [Otávio Florisbal, diretor-geral da Globo]? E o
Honorilton Gonçalves [bispo que é vice-presidente da Record]? Peça uma
entrevista com ele. O Florisbal você vai ter acesso facilmente. Com o
Honorilton o acesso vai ser bem mais difícil. Até meu acesso a ele é
pequeno, e eu sou uma pessoa muito benquista na Record.
Uma vez perguntei para o Florisbal se poderíamos ver uma mocinha evangélica na novela da Globo. Teríamos católica na Record?
Tem um personagem católico na minha novela. Perguntei: posso fazer com
que o juiz, o personagem do Cecil Thiré, seja abertamente católico?
"Pode."
Consultei, sim, da mesma que, se eu estivesse na Globo, consultaria
sobre um personagem que é um pastor evangélico. Não sei se a Globo
autorizaria. Acho que sim.
Não tive problema nenhum de ter personagem católico. O que eles não
gostam, e eu entendo perfeitamente, é que se deboche. Se você pega um
padre e debocha, a Record não vai gostar. Se pegar um pastor e debochar,
a Record não vai gostar. Se tratar religião com seriedade e respeito
não haverá problema. Se mostrar que o padre é ridículo, tropeça numa
casca de banana e cai de perna pra cima, aí eles vão se chatear.
A Record ainda faz uma certa mímica do "padrão Globo de qualidade" ou busca um caminho novo?
A Globo também não nasceu sozinha. É produto do que se fez na TV
Excelsior. A TV Excelsior, de certa forma, também aprimorou um trabalho
feito na Tupi.
É claro que a Globo influencia na Record. Eu sou da Globo, o Inácio
Coqueiro, que é o diretor, é da Globo, o elenco passou pela Globo... É
claro que tem um mimetismo.
O que quis salientar é que nós da Record estamos com mais tesão, mas
élan, mais vontade de fazer as coisas. A gente tem uma meta: vamos subir
a audiência. A gente vestiu a camisa. É bom para todo mundo: para o
mercado, para acabar com o monopólio. É um discurso bem antigo, mas é
bom. Nós estamos com essa ambição.
Os autores da Globo estão muito acomodados, cansados, com preguiça. Eu
sei porque eu saí de lá. Sinto uma apatia. E faz a mesma história mais
uma vez.
O SBT faz algum ruído na disputa das novelas?
Nenhum. SBT só tem feito bobagem, infelizmente. Um autor que poderia
fazer alguma coisa útil: Tiago Santiago, que saiu da Record. Posso
discordar da maneira que ele vê a teledramaturgia... Nós brigamos muito.
Ele queria me submeter à maneira de ele ver a dramaturgia. Não pode, eu
tenho 20 e tantas novelas nas costas.
Aí ele foi para o SBT e está fazendo a mesma coisa lá, mas sem sucesso
nenhum. A estrutura da emissora não ajuda, não valoriza a telenovela.
Acho que a Record entendeu que a novela é muito mais importante do que
os realities só agora. Eles eram capazes de prejudicar uma novela como
"Poder Paralelo" por causa de "A Fazenda". Hoje não fazem mais isso.
Parece que entenderam que a coluna que sustenta a programação, o centro
de gravidade da grade de programação, é a telenovela.
Entrevista feita pela FOLHA.COM